OBVIEDADES MUSICAIS

Jacques-Blanchard-St-Cecilia-2-I

O QUE É UM SÍMBOLO MUSICAL

         Tenho ainda clara para mim a lembrança dos momentos em que comecei a entender alguma coisa da relação entre a música que existe concretamente e aquela que está simbolizada em folhas de papel – em outras palavras, quando comecei a entender a teoria musical. As lembranças mais vívidas são aquelas dos dias – digo, das madrugadas – de estudo do Contraponto.

O Contraponto (literalmente: “um ponto contra outro(s) ponto(s)”) é a ciência do bem coordenar diferentes melodias simultaneamente. A palavra “ponto”, se refere, não precisamente às notas que soam ao mesmo tempo, uma contra a outra, mas às bolinhas, grafadas no papel, que as simbolizam. Isso já nos mostra o quanto essa arte depende da escrita, ou seja, do suporte simbólico da música, que é a partitura.

No começo desses meus estudos, gostava de lançar tinta no papel a torto e a direito. A coisa se dava como uma espécie de pintura, ou de um jogo de ligue-os-pontos, ou ainda, nos dizeres não pouco irônicos de meu amigo Guilherme, como “Sudoku”. Agradava-me escrever notas no papel, pontos que formavam belos desenhos e, só eventualmente, vir a ouvir no piano o resultado destes puzzles. Nada mais equivocado para um estudante de música! Ainda assim, naqueles momentos eventuais em que eu vinha a tocar meus exercícios, a realidade concreta da música aproveitava-se da ocasião para iluminar minha inteligência: nunca me esqueço do dia em que, após anos tocando as notas Dó e Lá simultaneamente, finalmente ter percebido, na intimidade de meu espírito, “ah, eis um intervalo de 6a. Assim o é”. Dali em diante, todas as vezes em que eu tocasse, ouvisse ou lesse as notas Dó e Lá, ou Si e Sol, ou Lá e Fá, aí estaria essa relação intrínseca entre elas a se mostrar, essa identidade, e eu as chamaria de intervalo de 6a.

Notemos bem, a nota Dó sempre esteve à distancia de 6 notas da nota Lá ( sendo 1-Dó,  2-Ré, 3-Mi etc..), e tocá-las ao mesmo tempo sempre resultou no som Dó simultâneo ao som Lá.  Eu com certeza já havia ouvido esse som uma infinidade de vezes antes. O que aconteceu, naquele momento específico, foi que eu tive uma intuição do que seja um intervalo de 6a.

Eis que, um dia, um punhado de intuições como essa se encontraram com a feliz afirmação de Aristóteles: “Os sons emitidos pela fala são símbolos das paixões da alma, ao passo que os caracteres escritos formando palavras são símbolos dos sons emitidos pela fala”. Ou seja, o velho Ari, mostrando-nos essa espécie de hierarquia entre “perceber algo na realidade > falar desse algo > escrever aquilo de que falei” estava indicando algo que já queria se revelar para mim enquanto músico: a realidade concreta das coisas antecede sua expressão escrita, sua simbolização. Foi em respeito a essa e tantas outras intuições – intuição que, literalmente, significa olhar para, considerar, e pouco tem a ver com o significado algo emboiolado que o senso comum hoje lhe atribui – que decidi obedecer à sugestão dos mestres, especificamente do meu professor Aleksey, de nunca estudar a arte do contraponto diretamente no papel, mas ao piano. Essa orientação hoje em dia me soa como a mais ululante das obviedades, mas um imbecil como eu é capaz de levar o poder de negar o óbvio a limites inimagináves. E, no fim das contas, parece mesmo que aprender não é senão assumir o óbvio.

II

DA CONFUSÃO ENTRE SÍMBOLO E SIMBOLIZADO NA MÚSICA;

         O pintor W. Kandinsky, pai da pintura abstrata, descreve em seu livro “Ponto e Linha sobre Plano” como a melodia da 5a Sinfonia de Beethoven poderia ser representada através de uma pintura tal como:

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Ou seja, o famoso “Pam pam pam paaaaam” tem, em pontos e linhas uma representação pictórica.

Ter percebido essa possibilidade de “redução” me causou um certo fascínio e, ao mesmo tempo, decepção. Eu me dizia, ainda que sem as palavras certas – o que só piora o sofrimento de um ignorante – “então é isso? A música termina nas bolinhas e pontinhos, e está tudo aí?”. Muitos anos de uma certa relação rancorosa com toda a teoria que se formulava em cima da música se seguiram, eu culpando-a por uma sorte de “seqüestro” daqueles maravilhosos estados anímicos em que a música me colocava. Afinal, não há, nas bolas e pontos de Kandinsky, o temor contido no primeiro tema da 5a de Beethoven. Nem o heroísmo, nem aquela, por assim dizer, candura paternal do segundo tema.

O que eu não havia percebido – e talvez o próprio Kandinsky não fizesse muita questão de avisar – no entanto, é que a representação em bolinhas é uma representação, assim como o é a onomatopéia “Pam pam paaaam” (aliás, eu aposto como em você, leitor, houve uma diferença nos níveis de realidade que esta segunda representação do tema de Beethoven e aquela sugerida pelo pintor russo suscitaram em sua memória). Qualquer representação, gráfica, verbal da música, é símbolo da música e, por definição, será menor em significado que aquilo que ela simboliza. Isto quer dizer que todos os pontos, linhas, equações e adjetivos juntos não são capazes de esgotar o significado de um só segundo de música. Os símbolos, assim o diz a filósofa Susanne Langer, são matrizes de intelecções, e não a intelecção em si.

Atenhamo-nos a essa frase: “O Símbolo é matriz de intelecção, e não a intelecção em si”. É possível, portanto, que ao estudarmos partituras, pontos num papel, passemos a entender algo de música? Não sem que tenhamos total domínio daquilo a que a partitura remete, ou seja, não sem que saibamos o quê essa partitura aponta na realidade musical. É necessário, para um estudante de música, conhecer de cada intervalo, figura rítmica, estrutura formal, recurso de orquestração, uma história análoga àquela das madrugadas que eu descrevi. É necessário intuir isso tudo para se dar ao luxo de conhecer a música através de um seu símbolo.

Como escrevo esse texto com vistas ao primeiro reencontro do nosso grupo de estudos em Contraponto, vejo nesse assunto uma importância crucial. O estudo do Contraponto me foi a maior porta de entrada para essas intelecções, desde que passei a entendê-lo como um meio para o conhecimento das propriedades intrínsecas à música que se revelam à inteligência humana no lide paciente e, sobretudo, humilde, diante da música. Há uma relação diretamente proporcional e inescapável entre a humildade de um indivíduo diante de seu objeto de interesse e o quanto  ele dele aprenderá – afinal, o que teria a música a dizer para alguém que não se cala diante dela?